domingo, 29 de maio de 2011

O meu tempo

           O tempo em que o meu tempo assim surgiu,
         o dia em que nasci, há muito tempo,
           veio do nada o tempo que foi meu:
           um só momento, meu, de mais ninguém.
           O tempo que antes de mim existiu
           foi tempo de outra gente, foi de alguém
           que em tempos outros tempos conheceu.
          
           O tempo em que cresci foi outro tempo
           que doutros foi também tempo feliz.
           Tempo de muitos tempos separados,
           divididos p’lo tempo mas ligados
           nos elos das histórias desse tempo,
           num mundo em que de tudo era aprendiz
           com tempo para tudo ter sonhado.
          
           Tanto sonhei, meu Deus, tanto aprendi,
           em tempos de trabalho, de labor
           com tempo para ter tempo p’ra tudo.
           Dia a dia, sempre um de cada vez,
           tanto lutei no tempo em que vivi
           e tanto amei com força, muito amor.
           E o tempo se fugiu… tempo se fez…

O tempo que passou se fez memória,
            não se perdeu: aconteceu. Ficou
            comigo neste tempo que me resta
            com tempo p’ra contar a sua história.

            O tempo que me deram
            Foi o tempo que vivi
            E senti.

sábado, 7 de maio de 2011

A máquina de fazer espanhóis

Reflicto hoje sobre um apontamento meu de 26 de Janeiro de 2010, em que dizia:
Por vezes não atendemos a coisas que acontecem dia a dia, ou não damos a devida atenção àquilo que se passa à nossa volta e que, mais cedo ou mais tarde, pode vir a ser precisamente a nossa situação.
Uma frase que se ouve, um pequeno trecho que se lê num jornal ou numa revista, um caso que nos é contado e se refere a pessoa conhecida ou até familiar, ouvimos, lemos e passamos adiante, sem aprofundarmos devidamente a situação ou as consequências que podem vir a ser idênticas para nós mesmos…
Em conversa entre familiares foi referida a situação de pessoa amiga com diversas dificuldades físicas e sociais, por questão da idade avançada, ocasionando até situações algo cómicas… se comicidade se pode encontrar em situações deste género, mas que na prática fazem rir o mais sisudo. Depois… alguns comportamentos irregulares e, por necessidade, até mais ríspidos por parte de alguns familiares, falta de paciência, etc..
Lembrei-me também de uma leitura que há dias estava a fazer no Público, sobre um novo livro de um novo escritor (Valter Hugo Mãe) em que existia uma frase de um protagonista duma história, homem idoso internado (ou hospedado… como agora se diz) num lar, que dizia (ou pensava) o seguinte: “despejaram-me aqui, com uma trouxa de roupa e um álbum de fotografias…”.
Como quem diz: Resolveram o problema deles… mas não o meu. Não precisarão de se incomodar comigo, tenho a minha roupa e até “um álbum de fotografias” para ocupar o tempo, com recordações. Está tudo resolvido…
Dá que pensar. A vida passa num instante e tão depressa somos novos, cheios de vida e projectos, como logo estamos cansados, curvados e perdendo forças. Todos nós envelhecemos, minuto a minuto, hora a hora, dia a dia, mas só muito tarde damos conta disso. O mundo à nossa volta gira com intensidade permanente, insensível a sentimentalismos e paixões, mas cada um tem que se prevenir com cautela e atempadamente, pois quando após uma longa caminhada chegar a hora do descanso merecido, surgirão as necessidades, também as incapacidades, e quando passarmos a ser um fardo e não uma companhia ou necessidade, pior ainda se a saúde não nos acompanhar, onde vamos desembarcar?
Durante a força da vida activa seria conveniente prever e acautelar sempre os tempos da velhice, de modo a que não sejamos nunca um peso para ninguém e possamos ter um fim de vida digno e descansado. Mas isto refere-se apenas à parte económica, sendo no entanto muito importante a componente afectiva. E é nestas situações que eu penso como é imprescindível levarmos uma vida de criação e manutenção de afectos, verdadeiros, que confortem o espírito e contrabalancem com as agruras da velhice.
Eu ouço dizer alguns que o que importa é a alegria de viver, o optimismo, a força da energia do dia-a-dia, o “positivismo” dos procedimentos, sem permitir estados de alma sombrios ou tristezas. Só se é velho no espírito… Tretas. Quando a tristeza aperta, quando o futuro parece poder acabar ali já, onde estará o conforto? Onde se encontrará um carinho?
Mas será que só nós próprios somos capazes de aparentar sempre boa disposição e alegria? Não é inevitável que o comportamento dos outros nos influencie? Podemos ignorar ou “não sentir” as indiferenças de que podemos ser vítimas?
Por exemplo: no caso do “velho” que proferiu aquela frase atrás referida, não é notória a sua tristeza por ter sido “despejado” naquele lar com uma trouxa de roupa e um álbum de fotografias? E não haverá casos em que isso é mesmo uma inevitabilidade? Não têm os filhos (ou outros familiares) direitos a que não se lhe atribulem as suas vidas com um “fardo”? Teremos o direito de os sobrecarregar? Como virá a ser comigo?
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Decorrido mais de um ano da data deste texto, dá-se a coincidência de me ter sido oferecido precisamente o livro a que faço referencia no início: “A Máquina de fazer espanhóis”. Acabei há poucos dias a sua leitura e concluo que as considerações originadas na altura por uma simples frase estão agora ainda mais reforçadas depois de ler o livro.
Uma reflexão sobre a certeza da beleza de uma vida de fidelidade e do amor, sobre a velhice e a amizade que pode ser construída a qualquer momento, mesmo entre pessoas da “feliz idade” como lhe chama o protagonista (não terceira idade…), até a “naturalidade cruel” de uma alegria até ao último segundo da vida. A ler e reflectir.