terça-feira, 12 de novembro de 2013

LIVROS...


Estou só e fecho os olhos mas sinto à minha volta milhares de olhares postos em mim. São setas disparadas de tomos alinhados nas estantes que me envolvem, perfilados aguardando uma chamada, soldados sempre presentes e disponíveis a serviram-me. Mas deles me esqueço por vezes, abandonado a meros descuidos e assim descuidando a minha necessidade de conhecimento e prazer.
Serenamente mas com firmeza olham-me e assim me questionam: “- Que sabes tu de nós? Porque esqueces a nossa presença? Porque não nos tomas nas tuas mãos e absorves a nossa seiva? ”
Quero responder mas não reajo! Deparo à minha frente com uma formação de vinte e três volumosos sábios de “Verbo” chamados, luso-brasileiros de preto vestidos, muito iguais e apertados, plenos de conhecimento e saber: ciências e religiões, heróis e santos, terras e mares, filósofos e matemáticos, guerras e sacrifícios, deuses e demónios, plantas e ares, águas e ventos, cidades e montes, vulgaridades e sabedorias, livros e músicas, mestres e aprendizes, astros e viagens, máquinas e gentes, e… e… e… e… Tanto saber!
Ao lado noto misturas e sinto um arrepio: guerra colonial e Guimarães.  
Lutas e emboscadas nas picadas, combates, estratégias e soldados de camuflado entre nobres com lanças, escudos e espadas, palácios, vielas e ruas empedradas, desfiles militares encobrindo atrocidades, palhotas queimadas e escolas criadas sem tectos nem livros, crianças correndo até ao castelo e o João Wilson dando-me a mão, saltando e sorrindo, promessas falhadas e poucos sonhos cumpridos. Corpos esventrados de Wiriyamu desfilando em cortejo fúnebre pela Rua da Rainha, vejo casas brasonadas, igrejas e gentes fidalga em batuques na selva, com seios descobertos saltando das varandas floridas em festas famosas, pés descalços e cubatas em círculo com gritos de batuque… 
Estou louco. Só um louco pode ter tais pensamentos, entrelaçar tais personagens e histórias. Acordei e relanço o olhar e reencontro conjuntos e colecções de cinco, dez, vinte, trinta ou mais volumes, contos, novelas, histórias de amor, romances, ciência, vidas famosas, ilustres reis, rainhas e súbditos, leis do amor, regras de física ou pundonor, bíblias ou rezas, jogos e passatempos, mil personagens de mil histórias que nunca chegarei a conhecer… Relembro alguns títulos, alguns nomes e enredos, mas muitos mistérios me sobram e sobressaltam a memória.
Fecho os olhos novamente. Sonho… 
Duma construção urbana e vulgar saltam os sons de uma estranha discussão entre um Ricardo Reis recentemente chegado do Brasil tagarelando com um cornaca cujo séquito se estende pelas ruas de Lisboa, com um elefante a caminho da Áustria cinco séculos antes. Na casa ao lado um submisso Winston Smith é controlado em 1984 por O’Brien e submisso deixa perder a sua liberdade, sujeitando-se a um pesadelo de despotismo impiedoso. Sente-se a loucura do libertino Gustav Aschenbach que tenta seduzir um jovem em Veneza, surgindo Pereira humilde e prudente, que afirma tudo e nada. Ouvem-se os gritinhos estridentes da boneca de Truman, inconsequente e histérica, bem encostada a dois amigos que se encontram para uma troca de ideias sobre o assunto e argumentos sobre as suas diferentes opiniões políticas. Nos jardins pitorescos e românticos de terras nortenhas surge a inglesinha Fanny vaporosa e esplendorosa no seu vestido rendado, burguesa enamorada mas confundida com pensamentos nas paredes da cadeia da Relação… Três ou quatro nativos africanos, em histórias desconcertantes narradas com novas palavras e flamingos em terra sonâmbula com imagens inebriantes de mistério e magia…
No tropel de imagens recordo o rodopio de vozes à minha volta, que não entendo e me confundem. Quem são estes personagens? De que estão a falar? Mil imagens saltando entre as folhas dos livros numa confusão, sem nexo, desordenadamente…
Referencias: “O Ano da Morte de Ricardo Reis”, “A Viagem do Elefante”, “1984”, “Morte em Veneza”, “Afirma Pereira”, “Boneca de Luxo”, “Era Bom que Trocássemos umas Ideias Sobre o Assunto”, “Fanny Owen”, “Terra Sonâmbula”, “O Último Voo do Flamingo”, “Um Rio Chamado Tempo, uma Casa Chamada Terra”.
Acordo.
A enciclopédia continua a fitar-me e não se impressiona com a companhia. Aqui tudo está bem e tudo tem o seu lugar. Ao lado passo os olhos por algumas lombadas dos pequenos livros de bolso, mais de sessenta, nomes famosos em mistura de origens, de nomes, de temas. Zola, Redol, Gil, Dostoievsky, Miller, Urbano, Moravia, Camilo, Manuel da Fonseca, Soeiro e tantos outros. Vejo os diários de Eduardo Prado Coelho em dois volumes, muito bem arrumadinhos em caixa própria, cuja estrutura e leitura me sugeriu a construção do meu actual “Quase Diário” com registos ocasionais sobre tudo e sobre nada, sobre todos e sobre ninguém… só para mim.
Dietrich Schwanitz coloca-se à minha disposição com uma formidável panorâmica sobre a história europeia, história da arte e da música, grandes filósofos, ideólogos, teorias e representações do mundo, debate sobre os papéis dos sexos, linguagem, o mundo do livro e da escrita, geografia política, inteligência, talento e criatividade e até indica “O que não convém saber”. São linhas para se entrelaçarem pouco e pouco… e que posso consultar hoje e amanhã, sempre que há uma dúvida. E são tantas!
Adormeço!
Lenz Buchmann corre aflito à frente do pai, Júlia surge, surge o suicídio, o que fica? Porque não o salvou “O Anjo Branco” tão solícito nas suas jornadas africanas? Negros e enfermarias, massacres e padres, numa guerra sem sentido que fala nas minhas raízes e também nas lembranças de tempos africanos em terras conhecidas mas em épocas diferentes. Que guerra foi esta? Surge o velhote depositado num lar “com carinho” mas só acompanhado de um saco de roupa e um álbum de fotografias, que sonhava com a máquina que originava a vinda de tantos espanhóis e que se sente um filho sem origem ou com mil paternidades. E o médico irascível que se vai transformando conforme se desenrolam à sua volta acontecimentos numa localidade perdida nos montes e com rudes habitantes. A doença incurável que descobre, nele? na companheira? Sente as ilusões de uma sociedade que pretende transparente mas ao mesmo tempo ouve os gritos de uma elite confortada que tudo pretende controlar. Salva-o um colega, médico rural, com mil situações de pessoas simples e afáveis, com os seus dramas e sinceridades.
Referencias: “Aprender a rezar na Era da Técnica”, “O Anjo Branco”, “A Máquina de Fazer Espanhóis”, O Filho de Mil Homens”, “Domingo à Tarde”, “Casa da Malta”, “Retalhos da Vida de um Médico”.
 
Não quero mais sonhos.
Tenho agora a companhia fabulosa de alguns “Gigantes da literatura universal” que se me apresentam e dos quais pouco ou nada conheço… Dante, Petrarca, Boccaccio, Maquiavel, Santa Teresa, Byron, Edgar Poe, Baudelaire, Voltaire, Goethe, Schiller, Tasso, Milton, Machado de Assis e Lope de Veja. De outros com nomes conhecidos tenho notícias: Bocage, Gil Vicente, Garrett, Padre António Vieira ou Balzac, Victor Hugo, Molière, Cervantes, Shakespeare ou Tolstoi. Galeria de notáveis com informação que nunca chegarei a absorver porque fui descuidado e nada fiz para merecer tais companhias.
Servissem de exemplo e tivessem deixado rasto a leitura em tempos efectuada dos Cadernos Biográficos de figuras como Fernando Pessoa, Amadeo de Souza Cardoso, Natália Correia, Salazar, António Variações, Florbela Espanca, Amélia Rey Colaço, José Rodrigues Miguéis, Marcello Caetano, Hermínia Silva, Sophia de Mello Breyner Andresen, Agostinho da Silva, Guilhermina Suggia ou Mário Viegas… e não estaria eu aqui tão desiludido e inquieto.

sábado, 2 de novembro de 2013

Um só clique…

      E… pensar muito. Pois é, de tanto pensar é natural que se repitam os pensamentos e voltem algumas ilusões e permanentes exames de consciência e alarmes quanto ao futuro e incertezas em relação a tudo quanto já fiz, muito? Pouco? Bem ou mal? Algo de especial? Alguma coisa ficará? Mas há interesse em ficar alguma coisa? Se olhar para trás, se olhar para antes de mim, vejo muito pouco, nada ou quase nada, e posso concluir que a memória só temporariamente existe e sempre tudo se esquece, mais cedo ou mais tarde, pais, avós, bisavós, e antes? Os avós dos avós dos meus avós? Quem os lembra concretamente? Como sentiam e amavam? Este sangue que corre nestas minhas veias onde começou? Um só acaso de um acontecimento me trouxe aqui mas bastaria uma qualquer diferença e eu não seria eu, seria outro. Podia ser outro, ou outra, ou até nem ter nascido, ter nascido noutro lugar, noutro tempo, e tudo seria diferente. Nem sequer serei propriamente dono do meu “eu”. Mas agora estou aqui a pensar e a escrever e ninguém sabe e pode nem vir a saber o que estou a pensar e a escrever, sei eu e a minha consciência, sinto eu na minha mente e na ponta dos dedos e no barulho das teclas deste computador onde escrevo. Mas ele não sente e apenas anota os caracteres de conformidade com a tecla onde carrego. Foi esta grande verdade que li há poucos dias no livro “Abraço” do José Luís Peixoto e aqui estou a repetir… Quer isto dizer que nem sequer ideias próprias estou a ter e só sou capaz de repetir aquilo que já li ou ouvi… Nem aquele autor saberia nem virá a saber o que estou a pensar aqui e agora sobre o que escreveu. Mas eu li e senti e sinto. Os pensamentos são leves, até breves e diversos e correm bem mais depressa que o tempo que demora a sua inserção nesta folha virtual à minha frente, neste computador. E é virtual porque um só clique e ela pode desaparecer de imediato, mas o que escrevi continuou a “ter existido” porque o pensei e senti.