sábado, 18 de maio de 2013

VIDAS DESTROÇADAS



No pinhal de Ofir, na restinga junto ao rio Cávado, encontrei há tempos um velhote que por lá vivia com um ou dois cães como companhia, num pequeno “refúgio” construído no meio dos arbustos e tábuas soltas, com sacas de plástico, farrapos e caixotes de cartão como agasalho. Nunca se meteu com ninguém e soube depois tratar-se de um antigo combatente do ultramar, que ali viera parar depois de um início de vida normal, mas que a guerra colonial desequilibrou mentalmente tornando-o um permanente revoltado e atormentado, sem qualquer ligação social. Teria até recusado o apoio que chegou a ser-lhe oferecido. Por ali deixava as suas mágoas…
Pelas ruas de Guimarães vagueia frequentemente um homem dos seus sessenta ou mais anos, de boné ou chapéu solto, modestamente vestido mas sempre com uma bicicleta pela mão (poucas vezes o vi montado na mesma…) com uma bandeira de Portugal já muito velha e esfarrapada, uma pequena cesta com alguns pertences e uma saca de plástico donde tira alguma coisa para comer, e sempre com um garrafão ou garrafa de vinho dependurado. Fala sempre muito alto mas não se intromete com ninguém. Vi-o hoje novamente, resmungando continuamente em alto som mas sem incomodar quem com ele se cruzava. Atrasei o passo atrás dele para ver se conseguia perceber alguma coisa do que estava a dizer e tive uma surpresa nunca anteriormente imaginada… Lamentava e revoltava-se com todo o seu passado: “em África matei os pretos, mas devia ter morto os brancos”, “perdi a mulher e os filhos e fiquei sozinho”, “lutei por Portugal e deixam-me uma reforma de miséria”…
Dois casos distintos apenas ligados pela guerra do ultramar, que resultaram em duas vidas praticamente destruídas e amarguradas… Quantas mais ainda estarão nas mesmas condições? Quanto sofrimento existiu e ainda persiste sem que ninguém disso se lembre? Quantos mortos? Quantos traumatizados física e psiquicamente? Quando penso que também eu lá estive, entre 1961 e 1964 mas nunca em combate, pois tive a sorte de ir parar a Moçambique onde a guerrilha se iniciou logo a seguir… sinto um alívio e dou graças a Deus pela minha sorte.