João Wilson é um rapazinho negro a quem no ano passado ensinei as primeiras letras e que frequenta agora com regularidade e muito bom aproveitamento a segunda classe do ensino primário, na escola que a Companhia criou em Janeiro de 1962 e mantém na pequena povoação indígena do Quenece, nas imediações de Inhaminga.
Franzino, de doze anos, tem olhos vivos e irradia grande simpatia que alia a uma extraordinária faculdade de compreensão e inteligência com que a Providência o dotou. Não tem Pai nem Mãe. Esta, nunca a conheceu e o Pai, segundo me contou numa das minhas visitas a sua casa há algum tempo, morreu já lá vão quase três anos. Vive perto da escola, numa pequena encosta, numa simples casa de taipa, muito limpa, rodeada de meia dúzia de palmeiras que, ao sol-pôr, tornam a paisagem tipicamente africana.
Há alguns dias, num dos pequenos intervalos das lides escolares, entretinha-me a vê-lo correr com os seus camaradas, no pequeno terreiro defronte da escola, rindo e brincando como qualquer criança da sua idade. Apesar de franzino é muito vivo e alegre e não há jogo ou brincadeira em que não goste de tomar parte.
No dia anterior houvera distribuição de correio e, quase maquinalmente, meti a mão ao bolso e tornei a ler a carta que recebera na véspera. Uma carta recebida do Continente é sempre motivo de alegria sem par e serve, durante alguns dias, para escape das saudades. Tornei a lê-la. E meditava, pensativo, recordando com saudade a família, a minha terra, os meus amigos, quando junto de mim senti uma voz fresca que me disse:
- O senhor Professor está triste ?
Olhei. Junto de mim estava o João Wilson, olhando-me meio sério, com os olhos numa interrogação. Fitei-o, agradecido por aquelas suas palavras e apenas lhe disse:
- Não, não estou triste. São saudades…
- Que são saudades, senhor Professor ?
Era difícil responder. As saudades sentimo-las e não sabemos explicar. Que responder ?
- Quando morreu o teu Pai ?
- Há três anos.
- Tu gostavas dele, não é verdade ? Muito ?
- Sim, gostava muito. Tive muita pena e chorei quando ele morreu.
- Gostavas que ele estivesse agora aqui contigo ?
- Sim, senhor Professor.
- Olha, João, isso são saudades.
- Mas o Pai do senhor Professor morreu ?
- Não, mas está muito longe. O meu Pai, a minha Mãe, a minha família, os meus amigos…
- Mas eu também sou amigo do senhor Professor…
- Eu sei, João, e quando eu voltar para o Continente vou ter muitas saudades tuas, do Chano, do Jossa e de todos vós.
- Eu também vou ter muitas saudades, senhor Professor.
Passei-lhe o braço pelo ombro e entramos na escola. O recreio havia terminado.
Inhaminga, 25 de Abril de 1963.
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Recupero este texto escrito há quase cinquenta anos e “sinto saudades”, da escola do Quenece, dos muitos alunos a quem ensinei as primeiras letras, dos torneios de futebol que organizava entre as várias classes (no total eram cerca de cento e quarenta alunos…), das dificuldades que sentia para compreender as palavras do dialecto local, os seus costumes, os seus anseios, tanta e tanta coisa. Concluo que o passado é muito importante e está sempre presente nas nossas vidas.
E é bom ter recordações, pois o passado existe sempre e este momento em que estou a registar estes pensamentos já será passado quando o voltar a ler.