sexta-feira, 24 de dezembro de 2010

Presépio

         
Porque estamos no Natal, fui ver a história do presépio, mágico símbolo desta época e que me traz à lembrança gratas recordações de infância.
         O termo hebraico “ebus” significava “praesepium” em latim e queria dizer manjedoira. Segundo o Evangelho de S. Lucas quando Jesus nasceu foi colocado numa manjedoira que havia no estábulo onde a Sagrada Família se tinha acolhido. Há pelo menos duas versões sobre essa manjedoira: seria apenas uma saliência natural da rocha da gruta que serviria de estábulo; ou teria sido mesmo uma manjedoira em madeira.
         De qualquer maneira, as representações do “presépio” como cenário do nascimento de Jesus remontam já ao século IV e costumam incluir um boi e um jumento aquecendo o Menino. Não consta que nessas representações aparecessem renas, ou camelos…
         Na noite de 24 para 25 de Dezembro de 1223, na aldeia italiana de Greccio o frade Francisco que com os “penitentes de Assis” vivia com pobreza no Mosteiro de S. Damião pregando o evangelho da paz e penitência, fez uma reconstituição com uma manjedoira cheia de feno e junto dela mandou colocar um boi e um jumento. Sobre a manjedoira foi improvisado um altar em que cantou a missa da meia-noite e um dos assistentes teve a visão de que na manjedoira dormia uma criança e Francisco de Assis se aproximou dela para a acordar.
         Francisco de Assis morreu em Outubro de 1226 pelo que aquela reconstituição do presépio só a poderá ter feito apenas mais duas vezes. Mas logo em 1228 foi canonizado e aquela cena de 24 para 25 de Dezembro de 1223 consta numa narração de 1229 e passados mais de trinta anos por S. Boaventura.
         Assim se fez a ligação do presépio de Jesus com S. Francisco de Assis, com numerosas e variadas representações em pinturas e esculturas.

quinta-feira, 23 de dezembro de 2010

Generosidade

Convivo com um respeitável amigo há muitos anos, e só agora descobri como as surpresas podem surgir a qualquer momento. Em conversa sobre tempos passados vim a saber que, por motivos profissionais, era visita regular ao seminário onde eu andei e que agora funciona apenas como local de recolhimento de religiosos. Combinamos uma visita para eu poder matar saudades. Marcada a data e local de encontro, o meu amigo atrasou-se quase uma hora em relação à hora combinada, mas logo vim a saber (e confirmar) que tinha ido abastecer-se de diversos artigos de mercearia para entregar na cozinha do seminário, pois que por lá passavam bastantes necessidades… Este gesto de generosidade foi uma surpresa para mim e mais boquiaberto fiquei quando soube que faz isso com muita regularidade, - semanal ou quinzenal? - quase que anonimamente, com simplicidade, sem exibições nem publicidade! Que nobreza de carácter!
Ainda há pessoas boas.

Solidão

Quem passava pelo Jardim Público, ali na Alameda, agora em grande revolução urbanística, podia verificar (se não estivesse a chover…) que normalmente por ali se encontravam muitas pessoas sentadas a ver… passar o tempo. Sobretudo homens, de postura e aspecto perfeitamente normais, já nada novos, que se juntavam em pequenos grupos ou se isolavam, pelos bancos de madeira, lendo o jornal ou envoltos nos seus pensamentos e nada fazendo, numa postura de deixar correr as horas, sem compromissos mas com feições de tristeza, alheamento, creio que talvez… com problemas de solidão! Pela hora do dia e pelo prolongar da estadia presumo que seriam reformados, por invalidez ou idade.
Noutro local do centro desta cidade de Guimarães, mais precisamente na Largo da Condessa do Juncal, também nos poucos bancos que por lá existem vêm-se a qualquer hora do dia outras pessoas, sobretudo também homens, mas de idades inferiores, com aspecto mais desleixado, já inspirando algum desconforto mas, confesso, nada vejo que possa criticar. São talvez mais… infelizes ou desprotegidos... ou viciados!
E começo a pensar como são imensas as histórias tristes que por aí se passam, de necessidade ou de isolamento, sem conforto e sem meios, de pessoas por quem passamos e logo esquecemos.
Quanto aos primeiros, talvez ao fim de uma vida inteira de trabalho tenham ganho apenas o direito de “nada fazer”, mas como seria bom que se notasse neles feições de alguma felicidade ou serenidade. Ou será que não se pode imaginar a coexistência da solidão com a felicidade? Estarei a exagerar?
Quanto aos outros, de certeza que passam necessidades e sendo assim… como poderão ser felizes?

quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

Um passeio à Gorongosa

Fui à Gorongosa duas vezes.
Quando parti para Moçambique, no início dos anos sessenta, nunca tinha ouvido falar na serra da Gorongosa, nem no seu Parque Nacional, nem na sua beleza imensa ou na variedade da sua fauna: leões, sabia que existiam em África, mas nunca em adolescente sonhei em vê-los ao vivo, rugindo à minha frente.
Estas são as impressões da primeira visita, em Outubro de 1961.
………………………
Depois de todos os preparativos combinados nos dias anteriores e verificados na parte de manhã, com o depósito já cheio de gasolina que conseguimos ao fim de vários abastecimentos parcelares, aqui e ali, carregamos alguns mantimentos e utensílios para a jornada, sem esquecer os necessários meios de segurança, que incluíam pequenas pistolas ou revólveres pessoais que todos possuíam, mesmo que clandestinamente, tabaco em abundância pois todos fumávamos, bem como a caixa de pequenos socorros e água, muita água, pois o calor era muito e na viagem poucos ou nenhuns seriam os locais de reabastecimento seguro, face à permanente ameaça da bilharziose. Éramos cinco os viajantes, três militares de folga e dois civis, aqui incluído o condutor e dono do vistoso Humber Super Snipe de 1958, de cor grená, uma maravilha de transporte, com os seus assentos almofadados duma suavidade enorme quando comparados com a dureza dos jipes militares.
Saímos de Inhaminga ao fim da manhã, para Muanza, passamos por Semacueza e continuamos para sul em direcção ao Dondo. A estrada é apenas uma simples picada com dois sulcos poeirentos, ou serpenteando entre o denso capim ou desembocando repentinamente numa longa savana salpicada aqui e ali por pequenas árvores isoladas. Atravessamos algumas pequenas povoações indígenas onde não havia qualquer problema em parar e esticar as pernas, cumprimentar os nativos e até oferecer alguns cigarros, surgindo quase sempre mulheres com os filhos mais pequenos às costas e outras crianças a correr para nós, descalças e em grande alarido.
Ao fim da tarde alcançamos a estrada alcatroada que vem do Dondo e da cidade da Beira, e viramos para a direita na direcção de Umtali, na fronteira com a Rodésia do Sul (actual Zimbabwe). Fizemos uma refeição ligeira na berma da estrada, sem entrar nos terrenos laterais, por precaução. Ainda é dia e é muito bonita a visão dos algodoeiros cujas plantações se estendem pelas margens da estrada. Parecem campos cobertos de neve. Algumas dezenas de quilómetros fazem-se rapidamente, pois o piso é razoável, apesar dos buracos no alcatrão e não haver marcações, mas o trânsito (naturalmente pela esquerda, como é regra em todo o território moçambicano, por influência da África do Sul) é muito raro. Passamos por Lamego (é curioso como em Moçambique se encontram locais com nomes de localidades de Portugal!) e chegamos a Vila Machado ao princípio da noite e aí, na pequena cantina explorada pelo Mussa Omar, monhé que conhecíamos de Inhaminga onde passava muitas vezes a caminho de Marromeu, onde tinha família, pernoitamos depois de uma refeição quente que sempre se arranja nestas ocasiões: frango à cafreal com muito piripiri suavizado pelas não muito frescas cervejas locais. Ainda houve tempo para dançar a marra benta em batuque vistoso.
Ainda de madrugada retomamos a viagem, agora novamente em estrada de terra cada vez mais estreita e sinuosa, até junto de um afluente do Rio Pungué e a travessia de cerca de trinta metros é feita por meio de um pequeno batelão que ali nos aguardava, habilmente puxado a braços por quatro homens que com antecedência tinham sido avisados da nossa chegada por mensageiros enviados pelo cantineiro, como faz sempre que por ali aparecem turistas. Que era o nosso caso… Aliás é até um pouco enigmática a rapidez com que os locais conseguem transmitir informações entre povoações que, por vezes, até distam bastantes quilómetros entre si. Enigma que as autoridades militares nem sempre conseguiam resolver… Depois da complicada e perigosa manobra de colocar o automóvel no batelão a pouca força da corrente é ultrapassada pela movimentação de grandes varas que os homens cravavam no leito do rio e pela força dos braços com que vigorosamente manejam por impulso. Grossas cordas estão presas às margens assegurando o trajecto no rio de uma margem à outra. Começara a amanhecer há pouco. O sol já espreitava e conforme começamos a subir a vegetação adensava-se e eram inúmeras as galinholas e outras aves que se atravessavam no caminho.
Após cerca de três dezenas de quilómetros em terra batida e sempre a subir chegamos finalmente ao Acampamento do Chitengo, que na altura era o único existente na reserva. Era como que a “recepção” do Parque Nacional da Gorongosa, embora existissem outras entradas noutros locais, com uma pequena casa de madeira onde então funcionava uma pequena área administrativa com um funcionário que anotou a nossa chegada e nos deu várias informações e onde tomamos um pequeno-almoço com ovos estrelados, café, bolachas e fruta.
Com a companhia de um guia que a partir daí nos acompanharia numa viatura aberta que nos foi disponibilizada, começamos imediatamente a percorrer as inúmeras picadas do parque, em andamento muito lento e ouvindo com atenção todas as informações que o guia nos dava. São às dezenas as galinholas que voltam a atravessar-se no caminho e outras aves que esvoaçam de um lado para o outro e muitos os macacos que saltam de árvore em árvore.
Quando as árvores desaparecem e dão lugar e savanas longas, de florestação rasteira, - e isso acontece com frequência pois o tipo de paisagem como que se intervala entre si – aparecem então grandes manadas de elegantes antílopes, umas vezes tuca ou pacalas, outras vezes cudos, pala-palas, gazelas ou gondonos. Feios (mesmo muito feios…) são os bois-cavalo que dão grandes corridas e repentinamente param, como se estivessem comandados à distância. Mais que uma vez. Feios são também os inhacosos quando deles nos aproximamos, mas que logo fogem na companhia das listradas zebras com que fazem grandes manadas. A sua fuga proporciona um espectáculo visual muito bonito, pela elegância da corrida e sincronia dos movimentos.
Ao longe, algumas árvores derrubadas são a indicação de que por ali andou elefante e, na verdade, a cerca de cinquenta metros divisamos uma manada desses enormes animais, grandes, pesadões, com as enormes orelhas abanando permanentemente e as trombas ao alto colhendo as folhas das árvores. Mesmo não estando muito perto de nós, ouviam-se bastante bem os fortes bramidos que soltavam entre si… já que não ligaram nada à nossa presença!
Divisam-se agora no horizonte algumas palmeiras, como se de um oásis se tratasse e logo o guia chama a nossa atenção para um conjunto de abutres que voam em círculo e do qual nos aproximamos. Muito lentamente acercamo-nos ainda mais, o guia preparou defensivamente a sua espingarda, desligou o motor e por sua indicação ficamos todos em silêncio, com os corações pulsando forte: Leões! Majestosos, imponentes, devoravam uma gazela que lhes não conseguiu fugir, num espectáculo de sangue e ossos espalhados ao longo de uma grande zona, enquanto os abutres aguardavam a sua vez de limparem as sobras… Foram deveras impressionantes aqueles minutos de vibrante contemplação dum espectáculo em que os cinco ou seis actores soltavam rugidos de sofreguidão e competiam entre si.
Prudentemente afastámo-nos e voltamos ao passeio pela savana. Ao longe correm velozes manadas de búfalos que se cruzam com outras de gnus, ou baualas (pareciam veados), deixando no ar grandes nuvens de pó e proporcionando uma permanente vibração no chão, parecendo um tremor de terra…
Dirigimo-nos depois para as margens do Lago Urema que recebe as águas de três dos quatros riachos que nascem na serra da Gorongosa que se avista ao longe. Pelo caminho ainda avistamos muito fugazmente alguns potamóqueros (autênticos porcos, mas grandes) e duas civetas, animal muito parecido com o leopardo. O lago é bastante grande e tem dezenas de hipopótamos, soltando grandes grunhidos e chafurdando nas suas águas sujas, barrentas. Normalmente estão quase totalmente submersos confundindo-se até com a própria água (ou lama?) do lago.
A visita estava a terminar e ainda voltamos a ver dois elefantes enormes acompanhados de um filhote (?) em calma paragem, no início da vegetação que voltava a aparecer mais alta, frondosa. Aqui e ali voltaram a surgir diversos antílopes e sempre as galinholas na estrada e os macacos saltando nos galhos das árvores. Eram quase três horas da tarde quando regressamos ao acampamento onde nos esperava o almoço com uns bifes de porco e batatas fritas, ovos e salsichas. A cerveja Manica acompanhou a leve refeição que foi breve pois ainda havia bastantes quilómetros a percorrer.
A despedida foi calorosa com os nossos agradecimentos ao pessoal do Acampamento que tão bem nos tinha recebido e acompanhado. Todos nos sentíamos maravilhados com o que nos fora dado presenciar e o regresso fez-se pelo lado nascente em direcção a Muanza, onde entroncamos na direcção norte da estrada que vinha do Dondo e seguimos para Inhaminga, onde chegamos já noite cerrada mas em toda a segurança. Não trazíamos troféus de caça nem essa era a nossa intenção: apenas muitas fotografias e muitas lembranças que não mais esqueceríamos.