quarta-feira, 29 de setembro de 2010

Branco

Pela primeira vez saíra de casa sem olhar as horas. Não se lembrava se se despedira da mulher, sequer se tinha tomado o pequeno almoço. Mas achava-se diferente.
Passo solto, descontraído, tentou assobiar a uma andorinha que lhe rasou a testa, mas não conseguiu e não estranhou o fracasso. Julgou sentir o ar fresco na cara e continuou caminhando, sem pressas, sem horas ...  passo solto, descontraído.
O dia parecia-lhe extremamente claro, mais claro que o habitual. Mais calmo. Algo estava diferente, sem cor, mas muito claro, muita luz, mas sem brilho. Não via o sol, mas estava muito claro. E não sentia frio. Nem calor. Nem sequer a brisa matinal. Estranhamente as casas pareceram-lhe todas muito brancas, como que caiadas naquele mesmo instante. E as pessoas que começava a divisar ? Porque seria que quase se confundiam “descoloridamente” com a paisagem ? E porque se comportavam tão apressadamente ? Apressadas, quase corriam... gesticulavam...
Mas continuou caminhando, sem pressas, sem horas ... passo solto, descontraído.
Reparava agora que “ouvia” um grande silêncio ao seu redor. Nem o vento, nem o habitual murmúrio da cidade que se avizinhava, nem os seus passos, nem as pessoas, nem sequer a andorinha alteravam esse silêncio. Porquê ?
E continuou caminhando, sem pressas, sem horas ... passo solto, descontraído.
E chegou à cidade.
Foi parando e avançando conforme as aberturas sentidas no tráfego, já que hoje estranhamente não estava a funcionar o tricolor sinal de trânsito, cujas orientações sempre cumpria, porque sempre procurava ser um bom cidadão... e não queria ser atropelado. Mas porque estavam hoje tão silenciosos os automóveis ? Nem sinais sonoros, nem arranques ou travagens, nem sequer o normal rum-rum dos seus motores ?
Parecia normal o movimento das pessoas apesar de continuarem apressadas, atarefadas, com convicção, cada uma na sua direcção. Algumas cumprimentavam-se num silêncio que não compreendia e algumas até paravam alguns instantes. Os estabelecimentos já tinham as suas portas abertas, alguns com os seus escaparates a ocupar parte do passeio, como habitualmente. Mas nada se ouvia.
Viu o seu amigo Humberto no outro lado da rua e estranhou a cor tão clara do seu fato mas acenou-lhe. Não recebeu resposta. Talvez o Humberto não o tivesse visto. E foi comprar o jornal diário, como sempre fazia. O senhor Rodrigues não o atendeu, apesar dos seus vários pedidos. Ignorou-o completamente, o que o deixou chocado. Mas pegou no jornal, aborrecido pela desconsideração, ao fim de tantos anos da mesma rotina matinal, sempre no mesmo quiosque. Abriu os braços em simultânea abertura das páginas do jornal e ficou admirado: o jornal não tinha qualquer notícia. Eram alvas folhas de papel.
E ficou perturbado, pois sentia que algo estava mal, em si ou nos outros: não havia côr, não havia som. Desejou chegar depressa ao escritório, abrir as janelas, ligar o computador, embrenhar-se no seu mundo, talvez sintonizar a rádio e ouvir as notícias. E apressou o passo.
Ao voltar da esquina, algo lhe chamou a atenção e deitou os olhos para um ponto diferente, com côr, num habitual e muito concorrido placard de parede. Sentiu um calafrio percorrer-lhe o corpo: estava morto.
Olhou uma, duas, três vezes, leu e releu a notícia, olhou a fotografia (que até estava a cores – primeira coloração do dia), voltou a olhar-se, olhos nos olhos, e confirmou: estava morto. A família de Manuel Sousa cumpre o doloroso dever de comunicar o falecimento do seu ente querido, etc. etc..
Não podia concordar com tal disparate, tinha havido um grande engano, sentia-se a pensar, via os outros, é certo que não os ouvia, que não o viam mas... estava ali. E começou a gritar: Eu estou vivo! Eu estou vivo! Eu estou vivo!
Mas as pessoas passavam, não o ouviam, não atendiam ao que ele gritava, e nem sequer resultavam as tentativas desesperadas para as agarrar. Ao fundo da rua viu o Alberto Mateus, de braço dado com a mulher, que vinham na sua direcção, e sentiu estar ali a sua esperança. Correu para eles e gritou-lhes “Alberto, Alberto, Isabel...”  mas eles seguiram, não o viram... Porquê ?
Deixou cair os braços, desiludido, atordoado, a cabeça baixou, pela primeira vez nesse dia sentiu um arrepio de frio e uma lassidão começou a correr-lhe o corpo.
E então sentou-se no passeio da rua e preocupou-se. Estaria enganado ? Estaria realmente morto ?
Mas havia ainda tanto a fazer, havia ainda tanto a concretizar, precisava de tempo, de mais tempo, queria acabar com os adiamentos, exprimir sentimentos abafados tanto tempo, ouvir melodias arquivadas, recomeçar amizades estragadas, sonhar sonhos quase esquecidos, acabar tarefas interrompidas, cantar canções de sentimento...
E chorou...
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- Manuel, Manuel, acorda que são horas de ir trabalhar.
A mulher sacudia-o com carinho.
O despertador não funcionara ....

1 comentário:

Marília Olema Correia disse...

Com a tua permissão (se mo permites), entrei no teu blog e entrei com pé direito porque foi com o pé direito que tu te iniciaste nele. Depois de divagares sobre questões que tem que ver com a tua pessoa, a tua maneira de ser, as tuas intenções ou objectivos, arrancas com um conto simplesmente espectacular, muito bem pensado e trabalhado e uma boa dose de humor. Apesar de rejubilar com a tua entrada neste mundo da comunicação que é a Internet, não me surpreendi com o que li pois sei bem aquilo de que és capaz na arte de escrever (como amador que sou, evidentemente). Acho que é uma boa maneira de os teus devaneios introspectivos, o teu mundo interior, não ficarem simplesmente depositados numa gaveta, mas antes como mereces, pelo menos exposto à apreciação de uns tantos – aqueles a quem deres essa confiança.
Gostei muito deste pequeno papo inicial, que será o princípio de longas conversas, para além das do café.
Um abraço para ti e para a Clarisse de nós dois
António Bernardino