quarta-feira, 15 de setembro de 2010

Noite e silêncio

Por vezes dou comigo a pensar em coisas que costumo fazer e que “quero” que signifiquem qualquer coisa quando, na realidade, são banalidades correntes mas que talvez definam um pouco a minha maneira de ser. Por exemplo, às vezes um certo gosto pela contemplação e silêncio…
Por indicação do meu médico, há já alguns anos, antes de me deitar como alguma coisa sempre que possível, pois por causa dos diabetes não devo estar mais de três horas sem comer… É o pequeno-almoço logo de manhã cedo, depois qualquer coisa (com um cafezinho…) a meio da manhã, almoço, lanche a meio da tarde, jantar e… qualquer coisa antes de deitar! Sou um comilão… Nada de exageros mas sim regularidade!
Verdade seja que me habituei e raramente deixo de cumprir este normativo e só em dias que janto muito tarde, ou janto mais fartamente num encontro ou festa ou… quando estou fora e não se proporciona fazê-lo é que não tomo o leitinho e como as bolachas antes de me deitar.
Há os habituais comprimidos diários da noite (que a C... sempre me deixa junto ao tabuleiro…) e normalmente como duas bolachas creme cracker e tomo um copo de leite quente com mokambo (no inverno) ou simples e frio (no verão). E que bem que me sabe.
O que eu acho curioso é o facto de um certo hábito que apanhei, quando estou em Ofir: depois de tudo preparado, apago a luz da cozinha e vou para a marquise com o pequeno tabuleiro, que coloco na beirada da parede virada para a rua e onde faço a pequena “refeição” olhando a escuridão e ouvindo o barulho do movimento das folhas das árvores em frente, tudo muito calmo, pois àquelas horas normalmente não se vê ninguém, com excepção de algumas pessoas que por vezes escolhem a passagem estreita junto à casa e que dá acesso ao “Biba Ofir”, uma espécie de bar ou discoteca, que funciona aos fins-de-semana e durante o verão, do outro lado da casa. Isto porque já a madrugada decorre… pois que é rara a noite em que me deito antes da uma da manhã.
São uns minutos de grande sossego que me fazem bem e muito aprecio aquele silêncio da noite, olhando a pequena rua quase sempre deserta, os candeeiros com a sua luz amarelada, sempre com uma corte de muitos insectos à sua volta e ouvindo-se perfeitamente o bater das ondas do mar na praia lá longe, numa aliança de silêncio e barulho que não incomoda. Por vezes até está um pouco frio pois faço isto em qualquer altura do ano, quando estamos só os dois em Ofir e normalmente a C... já subiu para dormir, mas nem esse frio impede esse hábito. Mesmo no verão quando lá por casa está mais alguém, dormindo no outro quarto ou ali ao lado na sala de jantar, eu não quebro a rotina e cumpro o mesmo ritual. Até parece que vou dormir melhor!
De tal modo me habituei a esse local que durante anos, nos dias em que tinha que vir a Guimarães trabalhar e tomava o pequeno-almoço cedo e sozinho, eu sempre o fazia na marquise, e só se alterava o cenário da “escuridão da noite” para a “luz do amanhecer”. E nessas ocasiões até era extraordinária a sinfonia de sons que se ouviam com o chilrear dos muitos pássaros que por ali voam em grande quantidade. Este pormenor ainda agora acontece durante o dia quando por lá estamos mais sossegados nestes meses intermédios da primavera ou outono. Ou então as corridas e saltos dos esquilos que em determinadas alturas do ano por ali aparecem com muita frequência, saltando de árvore em árvore, correndo até pelos fios dos postes de telefone ou electricidade, muitas vezes retirando os pinhões das pinhas e atirando para o lado (ou até para cima dos carros…) o resto das pinhas já desfeitas. Mesmo em frente a nossa casa existem muitas árvores, sobretudo pinheiros e eucaliptos, mas quero salientar uma bonita árvore que, a partir do início da primavera, floresce abundantemente em tons avermelhados e fortes, muito intensamente, mas só durante dois ou três meses. Depois, volta à sua cor verde habitual, mal se distinguindo na confusão de todas as outras árvores que a rodeiam.
E porque estou a registar estes aspectos da natureza que rodeia a nossa casa de Ofir não posso esquecer a beleza da vista que se alcança no terraço virado para o Rio Cávado. Como está voltado a norte, muitas e muitas vezes se sente um vento forte a incomodativo mas, quando tal não acontece – e ainda vão sendo bastantes os dias serenos que por lá apanhamos – é muito agradável a vista sobre o rio, mesmo que entrecortada pelos pinheiros que existem no logradouro defronte da urbanização, com Esposende lá mais longe na margem direita do rio e, ainda mais longe, os arborizados montes de S. Lourenço. Sobretudo no verão, quando está o tempo mais quente e ao fim da tarde quando o movimento na rua é pequeno e, em casa, ainda não se recomeçou a lide do retorno a casa dos “veraneantes”… é extremamente repousante ficar sentado ali no terraço, descontraído e em silêncio só levemente interrompido pelo roncar de um ou outro automóvel que vai passando na rua, ainda com a luz plena do dia mas sem o sol a incomodar, fechando os olhos e saboreando as maravilhas de um bem estar…simples, mas pleno.
Ainda há dias estava em Ofir só com a C... e a meio da tarde, quando vim lanchar, estivemos na marquise uns momentos em silêncio a ouvir o chilrear dos pássaros, sons muito diversos e bem sonoros, quase parecendo uma orquestra em sinfonia agradável e muito bonita. Só necessitaria de uma explicação do meu cunhado Zé Manel para identificar esses gorjeios. Que aves serão? Também já aconteceu à noite quando caminhávamos pela recta, quase deserta, em direcção ao café ouvimos muito nitidamente um piar que julgo ser de coruja, mas muito bem ritmado e compassado. Dizem que é habitual esse barulho, pelo que presumimos que essa coruja “mora por ali”…
O silêncio da noite, o marulhar das ondas, o chilrear dos pássaros… Tudo isso são acontecimentos comuns, banais, mas que aqui em Guimarães é raro podermos apreciar (também aqui não temos mar nem árvores junto à casa…) mas que me levam a pensar como há tantas coisas simples que podemos apreciar, calmamente, sem incomodar ninguém, desfrutando dum prazer muito interior, muito próprio, quase que “só nosso”. Será que faço este registo apenas porque sempre vivi na cidade, ou será porque ultimamente me sinto mais nostálgico? E pergunto se aqueles que vivem nessas paragens calmas e de vegetação frondosa também apreciam estas coisas, ou isto é mania minha?
Li em tempos uma história de um rei que, para despertar no filho a formação de um carácter forte mas sereno, o mandou para uma floresta onde deveria ouvir e explicar-lhe depois tudo o que tinha ouvido. Após várias descrições, só deu por cumprida a sua ordem quando o filho lhe disse que, ao fim de muitos dias, tinha”ouvido o nascer do sol, o abrir das flores, o cair da noite”! Então o rei disse que ele estava de coração aberto, pois já tinha “ouvido o silêncio”.  
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Agora me lembro que, aqui em Guimarães, já o ritual da pequena refeição antes de deitar é um pouco diferente e, como não tenho hipóteses do mesmo horizonte de Ofir, nem árvores frondosas a mexer as suas folhas… ou vou ouvir as últimas (e repetidas) notícias da TV ou, se o tempo o permite, abro a janela da cozinha e vejo as luzes da cidade, com o Castelo de Guimarães e o Paço dos Duques de Bragança lá longe, por cima da cascata das luzes da cidade. Também é um cenário muito bonito e repousante, desde que não haja festas…
A verdade é que o silêncio natural não me incomoda e até me agrada. É sinal de acalmia, descontracção, divagação do pensamento. Por isso gosto dele.
Mas não me falem em silêncio como sinal de zanga ou confronto. Não o suporto.

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