Estou só e fecho os olhos mas sinto à minha
volta milhares de olhares postos em
mim. São setas disparadas de tomos alinhados nas estantes que
me envolvem, perfilados aguardando uma chamada, soldados sempre presentes e
disponíveis a serviram-me. Mas deles me esqueço por vezes, abandonado a meros
descuidos e assim descuidando a minha necessidade de conhecimento e prazer.
Serenamente mas com firmeza olham-me e
assim me questionam: “- Que sabes tu de nós? Porque esqueces a nossa presença? Porque
não nos tomas nas tuas mãos e absorves a nossa seiva? ”
Quero responder mas não reajo! Deparo à
minha frente com uma formação de vinte e três volumosos sábios de “Verbo”
chamados, luso-brasileiros de preto vestidos, muito iguais e apertados, plenos
de conhecimento e saber: ciências e religiões, heróis e santos, terras e mares,
filósofos e matemáticos, guerras e sacrifícios, deuses e demónios, plantas e
ares, águas e ventos, cidades e montes, vulgaridades e sabedorias, livros e
músicas, mestres e aprendizes, astros e viagens, máquinas e gentes, e… e… e… e…
Tanto saber!
Ao lado noto misturas e sinto um arrepio:
guerra colonial e Guimarães.
Lutas e emboscadas nas
picadas, combates, estratégias e soldados de camuflado entre nobres com lanças,
escudos e espadas, palácios, vielas e ruas empedradas, desfiles militares
encobrindo atrocidades, palhotas queimadas e escolas criadas sem tectos nem
livros, crianças correndo até ao castelo e o João Wilson dando-me a mão, saltando
e sorrindo, promessas falhadas e poucos sonhos cumpridos. Corpos esventrados de
Wiriyamu desfilando em cortejo fúnebre pela Rua da Rainha, vejo casas
brasonadas, igrejas e gentes fidalga em batuques na selva, com seios
descobertos saltando das varandas floridas em festas famosas, pés descalços e
cubatas em círculo com gritos de batuque…
Estou louco. Só um louco pode ter tais
pensamentos, entrelaçar tais personagens e histórias. Acordei e relanço o olhar
e reencontro conjuntos e colecções de cinco, dez, vinte, trinta ou mais volumes,
contos, novelas, histórias de amor, romances, ciência, vidas famosas, ilustres
reis, rainhas e súbditos, leis do amor, regras de física ou pundonor, bíblias
ou rezas, jogos e passatempos, mil personagens de mil histórias que nunca chegarei
a conhecer… Relembro alguns títulos, alguns nomes e enredos, mas muitos
mistérios me sobram e sobressaltam a memória.
Fecho os olhos novamente. Sonho…
Duma construção urbana
e vulgar saltam os sons de uma estranha discussão entre um Ricardo Reis recentemente chegado do Brasil
tagarelando com um cornaca cujo séquito se estende pelas ruas de Lisboa, com um
elefante a caminho da Áustria cinco séculos antes. Na casa ao lado um submisso Winston
Smith é controlado em 1984 por O’Brien e submisso deixa perder a sua liberdade,
sujeitando-se a um pesadelo de despotismo impiedoso. Sente-se a loucura do
libertino Gustav Aschenbach que tenta seduzir um jovem em Veneza, surgindo Pereira
humilde e prudente, que afirma tudo e nada. Ouvem-se os gritinhos estridentes
da boneca de Truman, inconsequente e histérica, bem encostada a dois amigos que
se encontram para uma troca de ideias sobre o assunto e argumentos sobre as
suas diferentes opiniões políticas. Nos jardins pitorescos e românticos de
terras nortenhas surge a inglesinha Fanny vaporosa e esplendorosa no seu vestido
rendado, burguesa enamorada mas confundida com pensamentos nas paredes da
cadeia da Relação… Três ou quatro nativos africanos, em histórias
desconcertantes narradas com novas palavras e flamingos em terra sonâmbula com
imagens inebriantes de mistério e magia…
No tropel de imagens recordo o rodopio de
vozes à minha volta, que não entendo e me confundem. Quem são estes
personagens? De que estão a falar? Mil imagens saltando entre as folhas dos
livros numa confusão, sem nexo, desordenadamente…
Referencias: “O Ano da Morte de Ricardo Reis”, “A Viagem do Elefante”, “1984” , “Morte em Veneza”,
“Afirma Pereira”, “Boneca de Luxo”, “Era Bom que Trocássemos umas Ideias Sobre
o Assunto”, “Fanny Owen”, “Terra Sonâmbula”, “O Último Voo do Flamingo”, “Um
Rio Chamado Tempo, uma Casa Chamada Terra”.
Acordo.
A enciclopédia continua a fitar-me e não se
impressiona com a companhia. Aqui tudo está bem e tudo tem o seu lugar. Ao lado
passo os olhos por algumas lombadas dos pequenos livros de bolso, mais de
sessenta, nomes famosos em mistura de origens, de nomes, de temas. Zola, Redol,
Gil, Dostoievsky, Miller, Urbano, Moravia, Camilo, Manuel da Fonseca, Soeiro e
tantos outros. Vejo os diários de Eduardo Prado Coelho em dois volumes, muito
bem arrumadinhos em caixa própria, cuja estrutura e leitura me sugeriu a
construção do meu actual “Quase Diário” com registos ocasionais sobre tudo e
sobre nada, sobre todos e sobre ninguém… só para mim.
Dietrich Schwanitz coloca-se à minha
disposição com uma formidável panorâmica sobre a história europeia, história da
arte e da música, grandes filósofos, ideólogos, teorias e representações do
mundo, debate sobre os papéis dos sexos, linguagem, o mundo do livro e da
escrita, geografia política, inteligência, talento e criatividade e até indica
“O que não convém saber”. São linhas para se entrelaçarem pouco e pouco… e que
posso consultar hoje e amanhã, sempre que há uma dúvida. E são tantas!
Adormeço!
Lenz Buchmann corre
aflito à frente do pai, Júlia surge, surge o suicídio, o que fica? Porque não o
salvou “O Anjo Branco” tão solícito nas suas jornadas africanas? Negros e
enfermarias, massacres e padres, numa guerra sem sentido que fala nas minhas
raízes e também nas lembranças de tempos africanos em terras conhecidas mas em
épocas diferentes. Que guerra foi esta? Surge o velhote depositado num lar “com
carinho” mas só acompanhado de um saco de roupa e um álbum de fotografias, que
sonhava com a máquina que originava a vinda de tantos espanhóis e que se sente um
filho sem origem ou com mil paternidades. E o médico irascível que se vai
transformando conforme se desenrolam à sua volta acontecimentos numa localidade
perdida nos montes e com rudes habitantes. A doença incurável que descobre,
nele? na companheira? Sente as ilusões de uma sociedade que pretende transparente
mas ao mesmo tempo ouve os gritos de uma elite confortada que tudo pretende
controlar. Salva-o um colega, médico rural, com mil situações de pessoas
simples e afáveis, com os seus dramas e sinceridades.
Referencias: “Aprender a rezar na Era da
Técnica”, “O Anjo Branco”, “A Máquina de Fazer Espanhóis”, O Filho de Mil
Homens”, “Domingo à Tarde”, “Casa da Malta”, “Retalhos da Vida de um Médico”.
Não quero mais sonhos.
Tenho agora a companhia fabulosa de alguns
“Gigantes da literatura universal” que se me apresentam e dos quais pouco ou
nada conheço… Dante, Petrarca, Boccaccio, Maquiavel, Santa Teresa, Byron, Edgar
Poe, Baudelaire, Voltaire, Goethe, Schiller, Tasso, Milton, Machado de Assis e
Lope de Veja. De outros com nomes conhecidos tenho notícias: Bocage, Gil
Vicente, Garrett, Padre António Vieira ou Balzac, Victor Hugo, Molière,
Cervantes, Shakespeare ou Tolstoi. Galeria de notáveis com informação que nunca
chegarei a absorver porque fui descuidado e nada fiz para merecer tais companhias.
Servissem de exemplo e tivessem deixado
rasto a leitura em tempos efectuada dos Cadernos Biográficos de figuras como
Fernando Pessoa, Amadeo de Souza Cardoso, Natália Correia, Salazar, António
Variações, Florbela Espanca, Amélia Rey Colaço, José Rodrigues Miguéis,
Marcello Caetano, Hermínia Silva, Sophia de Mello Breyner Andresen, Agostinho
da Silva, Guilhermina Suggia ou Mário Viegas… e não estaria eu aqui tão
desiludido e inquieto.