sexta-feira, 24 de dezembro de 2010

Presépio

         
Porque estamos no Natal, fui ver a história do presépio, mágico símbolo desta época e que me traz à lembrança gratas recordações de infância.
         O termo hebraico “ebus” significava “praesepium” em latim e queria dizer manjedoira. Segundo o Evangelho de S. Lucas quando Jesus nasceu foi colocado numa manjedoira que havia no estábulo onde a Sagrada Família se tinha acolhido. Há pelo menos duas versões sobre essa manjedoira: seria apenas uma saliência natural da rocha da gruta que serviria de estábulo; ou teria sido mesmo uma manjedoira em madeira.
         De qualquer maneira, as representações do “presépio” como cenário do nascimento de Jesus remontam já ao século IV e costumam incluir um boi e um jumento aquecendo o Menino. Não consta que nessas representações aparecessem renas, ou camelos…
         Na noite de 24 para 25 de Dezembro de 1223, na aldeia italiana de Greccio o frade Francisco que com os “penitentes de Assis” vivia com pobreza no Mosteiro de S. Damião pregando o evangelho da paz e penitência, fez uma reconstituição com uma manjedoira cheia de feno e junto dela mandou colocar um boi e um jumento. Sobre a manjedoira foi improvisado um altar em que cantou a missa da meia-noite e um dos assistentes teve a visão de que na manjedoira dormia uma criança e Francisco de Assis se aproximou dela para a acordar.
         Francisco de Assis morreu em Outubro de 1226 pelo que aquela reconstituição do presépio só a poderá ter feito apenas mais duas vezes. Mas logo em 1228 foi canonizado e aquela cena de 24 para 25 de Dezembro de 1223 consta numa narração de 1229 e passados mais de trinta anos por S. Boaventura.
         Assim se fez a ligação do presépio de Jesus com S. Francisco de Assis, com numerosas e variadas representações em pinturas e esculturas.

quinta-feira, 23 de dezembro de 2010

Generosidade

Convivo com um respeitável amigo há muitos anos, e só agora descobri como as surpresas podem surgir a qualquer momento. Em conversa sobre tempos passados vim a saber que, por motivos profissionais, era visita regular ao seminário onde eu andei e que agora funciona apenas como local de recolhimento de religiosos. Combinamos uma visita para eu poder matar saudades. Marcada a data e local de encontro, o meu amigo atrasou-se quase uma hora em relação à hora combinada, mas logo vim a saber (e confirmar) que tinha ido abastecer-se de diversos artigos de mercearia para entregar na cozinha do seminário, pois que por lá passavam bastantes necessidades… Este gesto de generosidade foi uma surpresa para mim e mais boquiaberto fiquei quando soube que faz isso com muita regularidade, - semanal ou quinzenal? - quase que anonimamente, com simplicidade, sem exibições nem publicidade! Que nobreza de carácter!
Ainda há pessoas boas.

Solidão

Quem passava pelo Jardim Público, ali na Alameda, agora em grande revolução urbanística, podia verificar (se não estivesse a chover…) que normalmente por ali se encontravam muitas pessoas sentadas a ver… passar o tempo. Sobretudo homens, de postura e aspecto perfeitamente normais, já nada novos, que se juntavam em pequenos grupos ou se isolavam, pelos bancos de madeira, lendo o jornal ou envoltos nos seus pensamentos e nada fazendo, numa postura de deixar correr as horas, sem compromissos mas com feições de tristeza, alheamento, creio que talvez… com problemas de solidão! Pela hora do dia e pelo prolongar da estadia presumo que seriam reformados, por invalidez ou idade.
Noutro local do centro desta cidade de Guimarães, mais precisamente na Largo da Condessa do Juncal, também nos poucos bancos que por lá existem vêm-se a qualquer hora do dia outras pessoas, sobretudo também homens, mas de idades inferiores, com aspecto mais desleixado, já inspirando algum desconforto mas, confesso, nada vejo que possa criticar. São talvez mais… infelizes ou desprotegidos... ou viciados!
E começo a pensar como são imensas as histórias tristes que por aí se passam, de necessidade ou de isolamento, sem conforto e sem meios, de pessoas por quem passamos e logo esquecemos.
Quanto aos primeiros, talvez ao fim de uma vida inteira de trabalho tenham ganho apenas o direito de “nada fazer”, mas como seria bom que se notasse neles feições de alguma felicidade ou serenidade. Ou será que não se pode imaginar a coexistência da solidão com a felicidade? Estarei a exagerar?
Quanto aos outros, de certeza que passam necessidades e sendo assim… como poderão ser felizes?

quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

Um passeio à Gorongosa

Fui à Gorongosa duas vezes.
Quando parti para Moçambique, no início dos anos sessenta, nunca tinha ouvido falar na serra da Gorongosa, nem no seu Parque Nacional, nem na sua beleza imensa ou na variedade da sua fauna: leões, sabia que existiam em África, mas nunca em adolescente sonhei em vê-los ao vivo, rugindo à minha frente.
Estas são as impressões da primeira visita, em Outubro de 1961.
………………………
Depois de todos os preparativos combinados nos dias anteriores e verificados na parte de manhã, com o depósito já cheio de gasolina que conseguimos ao fim de vários abastecimentos parcelares, aqui e ali, carregamos alguns mantimentos e utensílios para a jornada, sem esquecer os necessários meios de segurança, que incluíam pequenas pistolas ou revólveres pessoais que todos possuíam, mesmo que clandestinamente, tabaco em abundância pois todos fumávamos, bem como a caixa de pequenos socorros e água, muita água, pois o calor era muito e na viagem poucos ou nenhuns seriam os locais de reabastecimento seguro, face à permanente ameaça da bilharziose. Éramos cinco os viajantes, três militares de folga e dois civis, aqui incluído o condutor e dono do vistoso Humber Super Snipe de 1958, de cor grená, uma maravilha de transporte, com os seus assentos almofadados duma suavidade enorme quando comparados com a dureza dos jipes militares.
Saímos de Inhaminga ao fim da manhã, para Muanza, passamos por Semacueza e continuamos para sul em direcção ao Dondo. A estrada é apenas uma simples picada com dois sulcos poeirentos, ou serpenteando entre o denso capim ou desembocando repentinamente numa longa savana salpicada aqui e ali por pequenas árvores isoladas. Atravessamos algumas pequenas povoações indígenas onde não havia qualquer problema em parar e esticar as pernas, cumprimentar os nativos e até oferecer alguns cigarros, surgindo quase sempre mulheres com os filhos mais pequenos às costas e outras crianças a correr para nós, descalças e em grande alarido.
Ao fim da tarde alcançamos a estrada alcatroada que vem do Dondo e da cidade da Beira, e viramos para a direita na direcção de Umtali, na fronteira com a Rodésia do Sul (actual Zimbabwe). Fizemos uma refeição ligeira na berma da estrada, sem entrar nos terrenos laterais, por precaução. Ainda é dia e é muito bonita a visão dos algodoeiros cujas plantações se estendem pelas margens da estrada. Parecem campos cobertos de neve. Algumas dezenas de quilómetros fazem-se rapidamente, pois o piso é razoável, apesar dos buracos no alcatrão e não haver marcações, mas o trânsito (naturalmente pela esquerda, como é regra em todo o território moçambicano, por influência da África do Sul) é muito raro. Passamos por Lamego (é curioso como em Moçambique se encontram locais com nomes de localidades de Portugal!) e chegamos a Vila Machado ao princípio da noite e aí, na pequena cantina explorada pelo Mussa Omar, monhé que conhecíamos de Inhaminga onde passava muitas vezes a caminho de Marromeu, onde tinha família, pernoitamos depois de uma refeição quente que sempre se arranja nestas ocasiões: frango à cafreal com muito piripiri suavizado pelas não muito frescas cervejas locais. Ainda houve tempo para dançar a marra benta em batuque vistoso.
Ainda de madrugada retomamos a viagem, agora novamente em estrada de terra cada vez mais estreita e sinuosa, até junto de um afluente do Rio Pungué e a travessia de cerca de trinta metros é feita por meio de um pequeno batelão que ali nos aguardava, habilmente puxado a braços por quatro homens que com antecedência tinham sido avisados da nossa chegada por mensageiros enviados pelo cantineiro, como faz sempre que por ali aparecem turistas. Que era o nosso caso… Aliás é até um pouco enigmática a rapidez com que os locais conseguem transmitir informações entre povoações que, por vezes, até distam bastantes quilómetros entre si. Enigma que as autoridades militares nem sempre conseguiam resolver… Depois da complicada e perigosa manobra de colocar o automóvel no batelão a pouca força da corrente é ultrapassada pela movimentação de grandes varas que os homens cravavam no leito do rio e pela força dos braços com que vigorosamente manejam por impulso. Grossas cordas estão presas às margens assegurando o trajecto no rio de uma margem à outra. Começara a amanhecer há pouco. O sol já espreitava e conforme começamos a subir a vegetação adensava-se e eram inúmeras as galinholas e outras aves que se atravessavam no caminho.
Após cerca de três dezenas de quilómetros em terra batida e sempre a subir chegamos finalmente ao Acampamento do Chitengo, que na altura era o único existente na reserva. Era como que a “recepção” do Parque Nacional da Gorongosa, embora existissem outras entradas noutros locais, com uma pequena casa de madeira onde então funcionava uma pequena área administrativa com um funcionário que anotou a nossa chegada e nos deu várias informações e onde tomamos um pequeno-almoço com ovos estrelados, café, bolachas e fruta.
Com a companhia de um guia que a partir daí nos acompanharia numa viatura aberta que nos foi disponibilizada, começamos imediatamente a percorrer as inúmeras picadas do parque, em andamento muito lento e ouvindo com atenção todas as informações que o guia nos dava. São às dezenas as galinholas que voltam a atravessar-se no caminho e outras aves que esvoaçam de um lado para o outro e muitos os macacos que saltam de árvore em árvore.
Quando as árvores desaparecem e dão lugar e savanas longas, de florestação rasteira, - e isso acontece com frequência pois o tipo de paisagem como que se intervala entre si – aparecem então grandes manadas de elegantes antílopes, umas vezes tuca ou pacalas, outras vezes cudos, pala-palas, gazelas ou gondonos. Feios (mesmo muito feios…) são os bois-cavalo que dão grandes corridas e repentinamente param, como se estivessem comandados à distância. Mais que uma vez. Feios são também os inhacosos quando deles nos aproximamos, mas que logo fogem na companhia das listradas zebras com que fazem grandes manadas. A sua fuga proporciona um espectáculo visual muito bonito, pela elegância da corrida e sincronia dos movimentos.
Ao longe, algumas árvores derrubadas são a indicação de que por ali andou elefante e, na verdade, a cerca de cinquenta metros divisamos uma manada desses enormes animais, grandes, pesadões, com as enormes orelhas abanando permanentemente e as trombas ao alto colhendo as folhas das árvores. Mesmo não estando muito perto de nós, ouviam-se bastante bem os fortes bramidos que soltavam entre si… já que não ligaram nada à nossa presença!
Divisam-se agora no horizonte algumas palmeiras, como se de um oásis se tratasse e logo o guia chama a nossa atenção para um conjunto de abutres que voam em círculo e do qual nos aproximamos. Muito lentamente acercamo-nos ainda mais, o guia preparou defensivamente a sua espingarda, desligou o motor e por sua indicação ficamos todos em silêncio, com os corações pulsando forte: Leões! Majestosos, imponentes, devoravam uma gazela que lhes não conseguiu fugir, num espectáculo de sangue e ossos espalhados ao longo de uma grande zona, enquanto os abutres aguardavam a sua vez de limparem as sobras… Foram deveras impressionantes aqueles minutos de vibrante contemplação dum espectáculo em que os cinco ou seis actores soltavam rugidos de sofreguidão e competiam entre si.
Prudentemente afastámo-nos e voltamos ao passeio pela savana. Ao longe correm velozes manadas de búfalos que se cruzam com outras de gnus, ou baualas (pareciam veados), deixando no ar grandes nuvens de pó e proporcionando uma permanente vibração no chão, parecendo um tremor de terra…
Dirigimo-nos depois para as margens do Lago Urema que recebe as águas de três dos quatros riachos que nascem na serra da Gorongosa que se avista ao longe. Pelo caminho ainda avistamos muito fugazmente alguns potamóqueros (autênticos porcos, mas grandes) e duas civetas, animal muito parecido com o leopardo. O lago é bastante grande e tem dezenas de hipopótamos, soltando grandes grunhidos e chafurdando nas suas águas sujas, barrentas. Normalmente estão quase totalmente submersos confundindo-se até com a própria água (ou lama?) do lago.
A visita estava a terminar e ainda voltamos a ver dois elefantes enormes acompanhados de um filhote (?) em calma paragem, no início da vegetação que voltava a aparecer mais alta, frondosa. Aqui e ali voltaram a surgir diversos antílopes e sempre as galinholas na estrada e os macacos saltando nos galhos das árvores. Eram quase três horas da tarde quando regressamos ao acampamento onde nos esperava o almoço com uns bifes de porco e batatas fritas, ovos e salsichas. A cerveja Manica acompanhou a leve refeição que foi breve pois ainda havia bastantes quilómetros a percorrer.
A despedida foi calorosa com os nossos agradecimentos ao pessoal do Acampamento que tão bem nos tinha recebido e acompanhado. Todos nos sentíamos maravilhados com o que nos fora dado presenciar e o regresso fez-se pelo lado nascente em direcção a Muanza, onde entroncamos na direcção norte da estrada que vinha do Dondo e seguimos para Inhaminga, onde chegamos já noite cerrada mas em toda a segurança. Não trazíamos troféus de caça nem essa era a nossa intenção: apenas muitas fotografias e muitas lembranças que não mais esqueceríamos.

quinta-feira, 25 de novembro de 2010

Três Moças

          
Três moças conversavam caminhando
seguindo à minha frente no passeio
passo certo, controlado,
entretidas, conversando
talvez sobre o amor…
E passeavam sem pressa,
sem olharem em redor,
sem receio que alguém
ouvisse a sua conversa.
E então disse a primeira
à do meio,
mais pequena mas ligeira
no andar, cabelos soltos ao vento,
no que foi acompanhada, confirmada,
pela mais alta, a terceira,
que a cabeça abanava
em sinal de assentimento:
“Tu para seres feliz tens que sofrer antes.”
E após alguns instantes
eu cheguei à conclusão
que de acordo eu estava:
Achei que tinham razão
pois também eu concordava
que um amor se teve espinhos,
se teve dor e persiste
renasce com emoção
e a prova é que existe.
E então…
Se até lágrimas verteu
valeu a pena, valeu…

domingo, 7 de novembro de 2010

Deitada a meu lado

Deitada a meu lado, em sossego,
dormindo descansada,
beijo teus cabelos estendidos
dourados.
Afago o teu rosto
sinto o teu odor
o teu calor.
Beijo os teus olhos,
levemente a tua boca
para não te acordar.
Sinto o bater do coração
e o teu peito saltitando
encosto ao meu rosto
com gosto.
Beijo os teus seios
com ternura,
um,
e outro,
devagar.
Deixo-me estar a sonhar
repousando o pensamento
e a cabeça no teu regaço,
num abraço,
lentamente,
para não te acordar.
Desço o olhar e os lábios,
beijo o teu ventre
com ardor.
Não acordes, meu amor.

quinta-feira, 4 de novembro de 2010

Saudades

            João Wilson é um rapazinho negro a quem no ano passado ensinei as primeiras letras e que frequenta agora com regularidade e muito bom aproveitamento a segunda classe do ensino primário, na escola que a Companhia criou em Janeiro de 1962 e mantém na pequena povoação indígena do Quenece, nas imediações de Inhaminga.
            Franzino, de doze anos, tem olhos vivos e irradia grande simpatia que alia a uma extraordinária faculdade de compreensão e inteligência com que a Providência o dotou. Não tem Pai nem Mãe. Esta, nunca a conheceu e o Pai, segundo me contou numa das minhas visitas a sua casa há algum tempo, morreu já lá vão quase três anos. Vive perto da escola, numa pequena encosta, numa simples casa de taipa, muito limpa, rodeada de meia dúzia de palmeiras que, ao sol-pôr, tornam a paisagem tipicamente africana.
Há alguns dias, num dos pequenos intervalos das lides escolares, entretinha-me a vê-lo correr com os seus camaradas, no pequeno terreiro defronte da escola, rindo e brincando como qualquer criança da sua idade. Apesar de franzino é muito vivo e alegre e não há jogo ou brincadeira em que não goste de tomar parte.
No dia anterior houvera distribuição de correio e, quase maquinalmente, meti a mão ao bolso e tornei a ler a carta que recebera na véspera. Uma carta recebida do Continente é sempre motivo de alegria sem par e serve, durante alguns dias, para escape das saudades. Tornei a lê-la. E meditava, pensativo, recordando com saudade a família, a minha terra, os meus amigos, quando junto de mim senti uma voz fresca que me disse:
- O senhor Professor está triste ?
Olhei. Junto de mim estava o João Wilson, olhando-me meio sério, com os olhos numa interrogação. Fitei-o, agradecido por aquelas suas palavras e apenas lhe disse:
- Não, não estou triste. São saudades…
- Que são saudades, senhor Professor ?
Era difícil responder. As saudades sentimo-las e não sabemos explicar. Que responder ?
- Quando morreu o teu Pai ?
- Há três anos.
- Tu gostavas dele, não é verdade ? Muito ?
- Sim, gostava muito. Tive muita pena e chorei quando ele morreu.
- Gostavas que ele estivesse agora aqui contigo ?
- Sim, senhor Professor.
- Olha, João, isso são saudades.
- Mas o Pai do senhor Professor morreu ?
- Não, mas está muito longe. O meu Pai, a minha Mãe, a minha família, os meus amigos…
- Mas eu também sou amigo do senhor Professor…
- Eu sei, João, e quando eu voltar para o Continente vou ter muitas saudades tuas, do Chano, do Jossa e de todos vós.
- Eu também vou ter muitas saudades, senhor Professor.
Passei-lhe o braço pelo ombro e entramos na escola. O recreio havia terminado.

                                                                       Inhaminga, 25 de Abril de 1963.


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Recupero este texto escrito há quase cinquenta anos e “sinto saudades”, da escola do Quenece, dos muitos alunos a quem ensinei as primeiras letras, dos torneios de futebol que organizava entre as várias classes (no total eram cerca de cento e quarenta alunos…), das dificuldades que sentia para compreender as palavras do dialecto local, os seus costumes, os seus anseios, tanta e tanta coisa. Concluo que o passado é muito importante e está sempre presente nas nossas vidas.
E é bom ter recordações, pois o passado existe sempre e este momento em que estou a registar estes pensamentos já será passado quando o voltar a ler.

segunda-feira, 1 de novembro de 2010

Globalização

            Muitas vezes dou comigo a pensar no modo como as coisas agora se processam no dia-a-dia das pessoas, parece que rotineiramente mas sempre com as “novidades” indicadas ou aconselhadas, controladamente, por enquanto até ordeiramente, como um grande rebanho dirigido ou orientado por algo desconhecido ou distante, mas com serviçais ambiciosos que tudo orientam, tudo definem e parametrizam, friamente, sem aviso. Quase que estamos impedidos de fazer ou decidir conforme o nosso gosto, sem pressão, sem indicação ou aconselhamento, pois tudo nos é sugerido ou imposto, em pacote, conforme mandam as regras do mercado. Globalmente. Abandona-se o indivíduo e aparece a multidão.

         Uns dizem que é a modernidade, a tecnologia, a inovação, a globalização económica e cultural entre os diversos países, outros falam nos mercados, na pressão financeira, no desaparecimento de muitas barreiras físicas e culturais e sugerir algo pessoal ou diferente é remar contra a corrente, é conservadorismo, é impróprio de “modernidade”. Tudo deve funcionar globalmente, grandes grupos, grandes superfícies, grandes bancos, grandes empresas, grandes… insensibilidades… E do que deveria resultar benefício para o “indivíduo” passa a reverter em mais lucros para esses gigantes que dominam os mercados.
         Não se fala com pessoas mas com “máquinas”, e mesmo ao telefone surge quase sempre uma voz de call center, que não sabemos quem é, que a seguir nos dá uma música durante largos minutos, frequentemente nos orienta depois através de números (se deseja… marque, se deseja… marque, se deseja… marque…) e por fim nunca pode esclarecer completamente o que desejamos saber e acaba por nos referir “tomamos nota e oportunamente será contactado”.
         Sim, somos contactados muitas vezes sem o desejar, a qualquer hora do dia, às vezes até da noite, porque o nosso nome ou número consta de uma infinidade de listas que os “grandes grupos” trocam entre si e que “amavelmente” nos vêm sugerir isto e aquilo em que nem sequer pensávamos e que assim, sub-repticiamente, nos fica a raiar na memória.
         Somos verdadeiramente inundados com supérflua publicidade e apesar de permanentemente “convidados” a aquisições desnecessárias, estamos limitados a regras, normas e procedimentos impostos pelos grandes grupos financeiros ou económicos, num regime de “standardização” em que deixamos de ser pessoas para passarmos a ser números. Passa a vigorar o número de senha que nos saiu na maquineta…
         Entretanto no cerne da questão estão os “orientadores” que comandam toda esta movimentação global com toda a sua corte de serviçais ambiciosos. E, uma vez ou outra, quando desprevenidamente escorregam… no escândalo, na corrupção, no compadrio, na desonestidade, lá vem a público um ou outro caso que é notícia de primeira página em grandes parangonas mas que logo desaparece, quase sem deixar rasto.
         Afinal, que liberdade nos trouxe a globalização?

quinta-feira, 21 de outubro de 2010

S.Manços

            Há alguns dias, numa consulta ao mapa de Portugal, os meus olhos fixaram-se casualmente no nome de uma localidade perto de Évora, de nome S. Manços, e que imediatamente me trouxe à lembrança uma amizade nascida há cerca de cinquenta anos, durante a minha curta vida militar.
            Quis o destino que no longínquo ano de 1961 eu fosse integrado na Companhia de Artilharia n.º 179 que foi destacada para prestar serviço militar em Moçambique, mais concretamente na vila de Inhaminga, na circunscrição de Cheringoma, a pouco mais de duas centenas de quilómetros da bonita cidade da Beira. Comigo seguiram quase duas centenas de militares que, pouco a pouco, passaram a constituir quase uma família que se manteve unida por mais de trinta meses, criando-se laços de grande amizade e permanente convívio, de que resultaram episódios que por vezes recordo com saudade.
            No meio de tantos homens é normal que se vão criando alguns pequenos grupos com aqueles com quem mais se conversa, porque as afinidades são maiores, quer por motivos de valores, de gostos, de princípios, de estilos e até de procedimentos comuns. Para além de outros, do meu grupo fazia parte o Cruz Dias.
            De tez morena, cara redonda e compleição forte como verdadeiro alentejano que era, o Sargento Cruz Dias foi quase um “generalista”, tão aberta era a sua maneira de ser, calmo, apaziguador, exigente e cumpridor mas muito brincalhão, educado, amigo do seu amigo. Julgo não exagerar dizendo que foi um amigo de todos os elementos da Companhia, de todos os grupos… Também tinha algum jeito para o futebol. 
            No continente para além dos touros tinha uma afeição pelos pombos-correios que criava com muito gosto, intervindo em diversos concursos columbófilos. Em Moçambique a sua paixão voltou-se para as caçadas nocturnas que frequentemente fazia pelo mato africano, orientado por pisteiros da região e acompanhado de caçadores locais, europeus e africanos, de lanterna presa à cabeça e espingarda sempre em posição de tiro, na esperança de surgir uma boa presa. Por duas vezes o acompanhei, infelizmente sem sucesso algum… e sempre muito comedido já que nunca fui dado a essas aventuras. Que eu saiba nunca encontrou leões mas por mais que uma vez os resultados foram positivos quanto a outras presas. Quando isso sucedia realizavam depois num bar local, Emporium ou Pantazis ou outro, verdadeiros banquetes de saborosos assados com gazelas que caçavam, sempre muito concorridos com inúmeros amigos militares e civis, e muito bem regados com cerveja Manica, tornando-se esses eventos verdadeiras festas de convívio e alegria que se prolongavam até altas horas da noite.
            Das recordações que tenho dele não posso deixar de mencionar um pormenor que registei e que muitos outros antigos camaradas recordarão. Quando surgia a oportunidade de se falar na “nossa” terra – e tantas vezes falei de Penafiel e Guimarães… – as saudades não podiam esconder-se e sempre surgiam loas à terra de cada um. O Cruz Dias dizia sempre que a terra dele era extraordinária e que podíamos confirmar. Como a maioria dos militares da Companhia era do norte de Portugal, o Cruz Dias acrescentava: “Vocês, nortenhos, quando forem ao sul e passarem perto de Évora e virem uma placa que diz S. Manços, 4 – podem confirmar isso; não tenham medo e venham visitar-me pois é aí que eu moro e “são quatro mas são mansos… e não ferram”.

sexta-feira, 15 de outubro de 2010

Voar


          Há mais de cinquenta anos, mais precisamente em 1957, com a cabeça cheia de ilusões e deslumbramento, com o coração puro e a mente ainda não poluída, tive a oportunidade de redigir uma pequena poesia que ainda hoje recordo de cor e que dizia assim:

                                    A Verdadeira vida

                        Tivesse eu asas, p’ra poder voar,
                        Fosse eu o vento, p’ra ninguém me ver
                        Iria longe, a todos perguntar:
                        O que é a vida, que será viver?

                        Será a vida apenas o espaço
                        Que do nascer nos leva até à morte?
                        Será o tempo que nós, passo a passo,
                        Vencemos, uns com tino, outros à sorte?
                        É isso só? Após a morte, então,
                        Nada mais há? Tudo pois morreu?
                        E então a alma que é o coração
                        Do nosso espírito, desapareceu?


                        Deus me ilumina e agora conheço
                        Que a vida é mais e não é só assim.
                        A verdadeira vida tem começo
                        Na própria morte, que é o nosso fim. 

          Ao rever a esta distância estas palavras tão simples, eu hoje desejaria acrescentar alguma coisa ao pensamento "daquele jovem" que fui... mas cujo espírito continua a acreditar na esperança:

                        Se as asas que eu um dia sonhei ter
                        quando tinha pouco mais de quinze anos
                        tivessem existido realmente,
                        saberia que a vida pode ser
                        muito mais que aquele falado espaço
                        que do nascer nos leva até à morte.
                        Há todo um tempo que decorre velozmente
                        mas que é nosso dia a dia, hora a hora,
                        (como então disse) passo a passo,
                        e nos é dado para agir,
                        aproveitar, saber utilizar e ter a sorte 
                        de encontrar um bom amigo
                        que nos possa ouvir.
                        Sorte é também sentir prazer
                        em oferecer o pouco que nós temos
                        e tantas vezes nem sabemos
                        o que isso vale…
                        A vida passa tão depressa
                        que o que interessa
                        é acreditar que tudo é acompanhado,
                        merecido ou virá a ser reconhecido.
                        Não há fado, nem enfado,
                        há a vida dia a dia que merecemos
                        que gozamos ou sofremos,
                        porque tudo é passageiro
                        e duradouro, duradouro,
                        é o bem que nós fizermos
                        e o mal que aos outros perdoarmos.
                        Não esqueçamos no entanto que existe a dor
                        sofrimento, falta de amor,
                        e de certeza que alguém está pior que nós.
                        E por vezes
                        nem sequer ouvimos a sua voz.








segunda-feira, 11 de outubro de 2010

Recordar















Recordar é ter memória,
Ter saudades é sofrer.
Recordar a juventude, a energia,
as corridas dia a dia
para lá e para cá,
o futuro que se queria
e o sonho que estava
ali já.
Recordar é ter memória
da nossa própria história,
tal e qual,
sem formatos programados,
nem ornamentos forçados,
real.
Recorda-se simplesmente
alguma coisa vivida
sofrida
gozada,
e por qualquer motivo
recordada.
Recordar os nomes,
as ruas e os lugares,
os tempos e contratempos,
simplesmente
recordar.
Mas…
Ter saudades é sofrer.
Sentir a falta de alguma coisa perdida
que não foi substituída
e nunca mais voltará.
De alguém que se perdeu,
da amizade que tivemos
e não soubemos
valorizar.
Da conversa que findou
subitamente,
sem sequer ter terminado
o pensamento.
Um vazio que se sente
grande, enorme, muito grande,
e que nunca mais se encheu.
Ter saudades é não saber ultrapassar
a solidão que magoa,
e faz renascer
o desejo de voltar e não poder,
Sentir a falta do que se teve e se perdeu
Se sonhou e não se realizou,
Sofrer por saber não ser capaz
De ultrapassar
De inovar
De inventar
Algo de novo que possa substituir
O que não volta mais.

        Quisera eu saudades não sentir.                                                  

segunda-feira, 4 de outubro de 2010

Desesperado

            Na noite profunda em mágoas desfeita
            Esperanças perdidas,
            Perfeita ilusão.
            Revolta contida em pranto interior,
            Mais forte que o querer…
            Querer sem poder,
            Sem forças num dia e noutro também,
            Sem pedir, sem falar,
            Sofrer, ocultar
            Fugir.
            Agora olho e vejo
            Que a terra está despida
            No horizonte perdido
            Sem vida.
            Nuvens velozes que correm com o vento
            E no pensamento
            De importante nada me ocorre.
            Só solidão
            Vazio.
            E a tristeza que sinto cá dentro,
            Que fustiga a alma
            E castiga
            Cruel, sem razão.

quinta-feira, 30 de setembro de 2010

Desconhecido

A
 AA
  AAA
    AAAA
     AAAAA
      AAAAAA
       AAAAAAA
        AAAAAAAA
         AAAAAAAAA
          AAAAAAAAAA
           AAAAAAAAAAA
            AAAAAAAAAAAA
             AAAAAAAAAAAAA
              AAAAAAAAAAAAAA
               AAAAAAAAAAAAAAA
                AAAAAAAAAAAAAAAA
                 AAAAAAAAAAAAAAAAA
                  AAAAAAAAAAAAAAAAAA
                   AAAAAAAAAAAAAAAAAAA
                    AAAAAAAAAAAAAAAAAAAA
                   AAAAAAAAAAAAAAAAAAA
                  AAAAAAAAAAAAAAAAAA
                 AAAAAAAAAAAAAAAA
                AAAAAAAAAAAAAAAA
               AAAAAAAAAAAAAAA
              AAAAAAAAAAAAAA
             AAAAAAAAAAAAA
            AAAAAAAAAAAA
           AAAAAAAAAAA
          AAAAAAAAAA
         AAAAAAAAA
        AAAAAAAA
       AAAAAAA
      AAAAAA
     AAAAAA
   AAAA
  AA
            A…………….  Vida.